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Editorial



Plataformização da Educação de São Paulo: morte da Escola Pública?

27 de março de 2024

O ano letivo de 2024 ficará marcado como o ano em que o estado de São Paulo promoveu uma enorme plataformização da sua educação pública. Na rede estadual, numerosas plataformas digitais se tornaram obrigatórias a professores, estudantes, coordenadores e diretores, que passaram a ser monitorados por métricas de quantidade e tempo de acessos a essas plataformas.

A Resolução Seduc-SP n. 04/2024 levou isso ao extremo, e atrelou a permanência de diretores escolares em seus respectivos cargos à entrega de índices de engajamento nas plataformas. Agora convertidos em “capatazes digitais”, diretores escolares podem perder seus empregos se não investirem o seu já escasso tempo em exigir e controlar o uso das plataformas por estudantes, professores e coordenadores.

As plataformas monopolizaram os debates durante as atividades de Planejamento Pedagógico do início deste ano letivo, com uma avalanche de orientações sobre como as escolas devem usar as plataformas. Apesar disso, as novas interfaces não foram analisadas e tampouco debatidas com as escolas. Foram simplesmente impostas em reuniões cansativas e desalentadoras, que injetaram desânimo nas equipes escolares antes mesmo do início das aulas.

Em sua pluralidade e cotidianidade, as escolas são ricas em conhecimentos e ensinamentos. Tal diversidade, em especial na escola pública, permite que os professores aproximem os estudantes dos conteúdos escolares de diferentes formas. Burocratizar, limitar, cercear – e até mesmo eliminar – aquilo que é a maior riqueza da experiência escolar é uma perversidade que trará severos prejuízos aos processos de ensino e aprendizagem na escola pública. A formação integral dos estudantes demanda, ao contrário do que pretende a plataformização, o adensamento das relações humanas para o ensino dos conteúdos científicos e para uma formação cidadã.

A adoção generalizada do uso de plataformas digitais nas escolas inviabiliza a adoção de metodologias de ensino dialógicas que valorizam as interações entre estudantes, entre professores e estudantes e, de ambos, com os conteúdos, em percursos didáticos mais participativos e estimulantes. Nesse sentido, a imposição governamental da plataformização escolar é profundamente antipedagógica.

Exemplo da falta de espaço para a diversidade e a criatividade pedagógicas são as disciplinas denominadas “Orientação de Estudos”, “Tecnologia e Robótica” e “Aceleração para o Vestibular” do recém-criado “Itinerário Formativo Global” (uma contradição em termos, já que, se é “itinerário”, não faz sentido que seja “global”). Nesses componentes, todas as aulas devem ser ministradas por meio das plataformas. Além disso, todas as outras disciplinas devem fazer uso de plataformas como Matific, Tarefas SP, Khan Academy, Prova Paulista, Redação Paulista, Provão Paulista e Leia SP – todas com metas a serem atingidas ao longo da semana ou quinzena, conforme documentos orientadores da Seduc-SP.

As plataformas digitais foram transformadas em rígidos organizadores das aulas que os professores devem simplesmente transmitir aos estudantes. A vigilância generalizada do cumprimento de metas de acesso às plataformas exacerba o mal-estar nas comunidades escolares e transforma escolas em uma espécie de panóptico digital, cujos dados de “engajamento” serão utilizados para avaliar profissionais da educação – especialmente diretores escolares – e para afastá-los de suas funções.

Estamos testemunhando em nossas escolas o choque entre um paradigma educacional humanista e uma concepção de educação tarefeira e vazia, mais preocupada em “cumprir um comando”, “dar aceite”, “dar por concluído”, “mudar de fase” e em produzir áreas de trabalho digitais com linhas “verdinhas”, do que em refletir sobre o sentido educacional de tantas operações mecânicas.

A Secretaria de Educação do Estado de São Paulo (Seduc-SP) vem priorizando a incorporação da linguagem das plataformas no cotidiano das escolas, induzindo uma submissão do trabalho pedagógico a um burocratismo burro e inaceitável: “Você tem que entrar lá e dar um aceite!”; “Clicar em ‘eu aceito’, inúmeras vezes”. Esse treinamento para a obediência implica, por outro lado, no esvaziamento das funções mais importantes da escola e da educação públicas.

A proliferação de plataformas de uso obrigatório opera uma inversão daquilo que o desenvolvimento tecnológico poderia propiciar à educação em todas as áreas do conhecimento. Na rede estadual de São Paulo, não é a tecnologia que está a serviço da educação; são as escolas públicas que estão a serviço da tecnologia, subjugadas por suas métricas, sua linguagem, seu formato e conteúdos pasteurizados.

O falso otimismo e os discursos celebratórios em torno do solucionismo tecnológico, por parte do governo paulista e de outros dirigentes da rede estadual, contrastam com a realidade das escolas, nas quais o cumprimento de tarefas e metas é frequentemente inviabilizado por plataformas instáveis e repletas de bugs, por problemas de conexão e pela insuficiência de equipamentos e profissionais de apoio e logística. Nem mesmo os registros de aula e frequência, que em tese deveriam ser feitos via plataforma (e, preferencialmente, no momento da aula), têm sido possíveis, em razão de problemas de conexão ou de instabilidade das ferramentas.

Por medo de sanções ou consequências negativas, professores já sobrecarregados se veem obrigados a cumprir suas tarefas nas plataformas fora do horário de trabalho. O controle hiperburocrático do trabalho docente, associado a limitações de tempo e de infraestrutura para lidar com a multiplicação de demandas, potencializa sentimentos de ansiedade, angústia e estresse entre equipes escolares e estudantes.

Algumas questões têm sido levantadas nas escolas: por que adotar o uso de ferramentas de qualidade tão precária? Quem são os “técnicos e profissionais” responsáveis pela criação e pelo “suporte” digital responsável pela virtualização dos serviços educacionais no estado de São Paulo? Qual o custo dessas ferramentas para o Estado?

Temos a sensação de que o “nobre ofício de educar” foi reduzido à figura de um professor descartável, cuja trajetória, experiência e formação acadêmica são irrelevantes para o exercício da docência. Nesse terreno baldio e arrasado, os estudantes são receptáculos de conteúdos empacotados e liberados em dose controlada por plataformas sem qualquer vínculo com a educação pública. A escola como lugar de vida pulsante, onde sentimentos e pensamentos animam mentes e corpos em desenvolvimento, e onde criatividade e alegria são combustíveis para o enfrentamento coletivo das adversidades, parece estar com os dias contados no estado de São Paulo.

Limitar os horizontes da escola pública às plataformas digitais e submeter as comunidades escolares ao modelo de negócio das empresas de tecnologia, das redes sociais e da economia da atenção é caminho que pode produzir danos irreversíveis a milhões de crianças e adolescentes.

O que desejamos para as novas gerações? Viciá-las nas telas e alimentar a ilusão de que cumprir uma tarefa simplória numa plataforma mal ajambrada é sinônimo de aprender? Ou prepará-las para compreender o mundo e nele tomar parte? Estaremos diante da morte da escola pública, tal como a conhecemos?