O que há de novo no Programa de Ensino Integral da Seduc?



23/12/2020

O programa de ensino integral (PEI)

Em novembro de 2020, a Secretaria de Educação do Governo de São Paulo (Seduc) anunciou que mais 400 escolas regulares passariam a integrar o Programa de Ensino Integral (PEI) de sua rede. Com isso, o número de escolas de ensino integral no estado saltará de 364 para 1.064 a partir de 2021, o que representa 542 mil vagas para alunos dos anos finais do ensino fundamental e ensino médio1. O programa PEI tem promovido um intenso debate na rede paulista. Seja pelas mudanças da condição de trabalho docente, pelo currículo, pela gestão para resultados ou ainda pela ampliação da permanência na escola. O fato é que esse programa tem despertado opiniões controversas na comunidade escolar e entre pesquisadores. Este texto é fruto das reflexões realizados pelo Grupo Escola Pública e Democracia (GEPUD). A sua redação coletiva se baseou em artigos e pesquisas sobre o tema, como também da observação de diretores, coordenadores e professores da rede paulista a partir das vivências do cotidiano escolar. Desejamos que ele possa contribuir para o aprofundamento do conhecimento sobre a PEI e que forneça subsídios para o debate e a reflexão sobre o programa.

Os antecedentes do PEI

Em 2011, a Seduc-SP lançou, em conjunto com mais 15 organizações da sociedade civil, o Programa Educação Compromisso de São Paulo (PECSP). Segundo a própria Secretaria, o programa “[...] pretende fazer com que a rede estadual paulista figure entre os 25 melhores sistemas de educação do mundo nas medições internacionais, além de posicionar a carreira de professor entre as dez mais desejadas do Estado”2.

As intenções da Seduc tocam em pontos importantes. O primeiro, é a constatação da internacionalização da noção de qualidade pretendida para educação paulista, vinculada ao desempenho em avaliações como o Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA), coordenada pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE); o segundo, é a intenção de reposicionamento da carreira docente, considerada cada vez menos interessante pelos jovens, especialmente a rede pública estadual paulista, uma das piores carreiras do magistério do país. Indiretamente, essa meta da Seduc-SP vincula três elementos fundamentais do programa PEI: avaliação, currículo e trabalho docente.

Como estratégia para alcançar os seus objetivos, o Programa Educação Compromisso de São Paulo busca reorganizar a educação paulista a partir de cinco pilares3, sendo que o pilar 3 trata da educação integral. Ainda em 2011, como parte de sua agenda, a Seduc anunciou o Programa de Ensino Integral (PEI)4, por meio de uma parceria com o Instituto de Corresponsabilidade pela Educação (ICE), organização não governamental que foi responsável pela implementação das escolas de tempo integral em Pernambuco a partir da experiência de revitalização do tradicional Ginásio Pernambucano. No início do ano letivo de 2012, pontapé inicial do PEI, aderiram ao programa 6 escolas de ensino médio5. Entretanto, essas seis primeiras unidades não inauguraram pioneiramente a experiência de escola em tempo integral na rede pública paulista. Isso já havia acontecido em 2005, quando, por meio da Resolução SE nº 89/2005, o governo paulista implantou o Projeto Escola de Tempo Integral (ETI) com o objetivo de favorecer o desenvolvimento social, pessoal e cultural dos estudantes a partir de uma ampliação e aprofundamento do currículo escolar.

Os debates em torno da educação integral já figuravam na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei nº 9.394/1996 (LDB/96), que se referia à necessidade de ofertar educação escolar em tempo integral. O Plano Nacional de Educação (PNE 2001-2010) também previa o progressivo atendimento em tempo integral para a educação infantil e o ensino fundamental, assim como o PNE 2014-2024, que propõe que as matrículas em período estendido devam representar 25% do total.

No âmbito internacional, o ensino em tempo integral se relaciona a uma série de debates sobre o papel da escola e da educação para o século XXI. Segundo o documento orientador do programa PEI, “[...] a educação brasileira está sendo beneficiada pelos avanços firmados, nas últimas décadas, desde o compromisso assumido na Carta Constitucional de 1988, na Conferência de Educação para Todos, realizada em Jomtien, na Tailândia, em 1990, convocada pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) e na aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, em 1996”6.

Essas instituições e documentos compartilham, essencialmente, uma compreensão sobre o papel da escola no que se refere ao enfrentamento das desigualdades sociais e a formação para um novo mundo do trabalho do século XXI. Suas posições claramente dialogam com a ideologia da qualificação como elemento que determina a empregabilidade. Nota-se uma concepção de educação na qual a qualidade é entendida sob o conceito de eficiência, numa narrativa que vincula o papel da escola às demandas do mercado.

Como o PEI funciona?

As Escolas de Tempo Integral (ETI) e as PEI compartilham alguns pressupostos e permanências na passagem de um projeto ao outro. Como permanências, destaca-se a avaliação direcionada para os conteúdos vinculados à base comum curricular; a pedagogia voltada ao conteúdo das avaliações externas; o currículo tem-se apresentado como eminentemente tecnicista no intuito de uma formação direcionada para o mercado de trabalho, porém, mesmo tecnicamente esse currículo fornece uma formação restrita, que faz o estudante refém de uma profissão, em um momento em que esta está se tornando tão efêmera, devido a enorme velocidade das mudanças tecnológicas. Ou seja, poderemos formar uma mão de obra já ultrapassada, mal o aluno saia da escola. A presença de empresas nos projetos reformadores e a citação de organismos internacionais também são características comuns.

Nas escolas PEI, a jornada dos estudantes é de até nove horas e meia e a eles são servidas três refeições diárias. Na matriz curricular, além da grade regular com as disciplinas obrigatórias, os alunos têm orientação de estudos no formato de tutoria com foco na preparação para o mundo do trabalho e auxílio na elaboração de um projeto de vida. O currículo conta também com disciplinas eletivas, que são elaboradas a partir das escolhas dos estudantes e o seu vínculo ao projeto de vida. As eletivas, de duração semestral, são finalizadas com eventos de apresentação denominados “culminância”, na qual os projetos desenvolvidos são apresentados à escola e comunidade.

No que se refere à gestão, temos mudanças importantes. Além da direção e vice direção de escola, a PEI conta com três coordenações de área (linguagens, ciências humanas e da natureza) e uma coordenação geral. O módulo de funcionários, isto é, a equação que relaciona o número de alunos da escola à quantidade de agentes de organização escolar (AOE), que realizam todas as tarefas cotidianas da escola com a exceção das refeições, também é alterada, com um ganho de funcionários, apesar disso, devido ao contexto geral da quase inexistência de escolas da rede com o módulo de agentes completo, esse ganho pode ser insuficiente.

As ETI e as PEI se diferenciam em relação à orientação para a escolha das escolas que integrarão os programas. Segundo a resolução que regulamentam as ETI, as escolas participantes do programa devem estar em área de alta vulnerabilidade social. No caso das PEI, os critérios de escolha das escolas não são explícitos. O que algumas pesquisas têm verificado é que as escolas PEI estão, predominantemente em áreas de baixa vulnerabilidade social.

Com exceção dos AOE, direção, coordenação e professores passam à condição de designados, isto é, ainda que titulares de cargo em outra unidade escolar, a sua permanência no PEI dependerá exclusivamente de um complexo processo de avaliação de resultados. A gestão do desempenho de professores e gestores se dá a partir de índices e metas estabelecidas por meio das avaliações institucionais, com destaque para as provas do Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo (Saresp), que se vinculam ao comprometimento da equipe nas etapas intermediarias de avaliação, como as bimestrais da Avaliação de Aprendizagem em Processo (AAPs), bem como ações de correção e aprimoramento do Método de Melhoria de Resultados (MMR).

Importante notar que todas essas mudanças se articulam aos pilares do PECSP, sobretudo no que se refere à gestão para resultados, inclusive com o uso de métodos oriundos do mundo corporativo. O controle docente, por meio do currículo e avaliações, a formação dos alunos para a empregabilidade, em consonância com as radicais transformações do mundo do trabalho, caracterizado pela flexibilidade, desregulação e precariedade, completam o quadro. É possível, assim, identificar confluências entre o PEI e os princípios básicos que orientam o que veio a ser chamado de a Nova Gestão Pública7, principalmente em função do modelo de gestão, pautado em avaliações, monitoramentos, metas a serem cumpridas e foco nos resultados.

As escolas PEI são, ainda, responsáveis pela disseminação de boas práticas de gestão escolar. Por meio de seminários, vídeos institucionais e formação, com o incentivo de que as suas ações sejam replicadas nas outras unidades escolares8, sejam elas integrais ou regulares. Mais do que uma alternativa à escola regular, o PEI foi concebido como modelo, ideal a ser seguido, seja do ponto de vista da gestão ou da prática pedagógica, ainda que sob condições radicalmente distintas de trabalho.

Entre o discurso de excelência e a lógica do controle

Muitas das mudanças propostas pela PEI são reivindicações históricas do magistério, tais como a jornada integral e a dedicação exclusiva, sistema de avaliação docente, diversificação curricular, incremento salarial, participação da comunidade, entre outras. Todavia, segundo Girotto e Jacomini (2019) entre as diversas implicações do programa, a relação entre o PEI, o trabalho docente e o modelo de gestão adotado merecem um olhar mais atento.

Sob o regime do PEI, o RDPI adquire forte relevância no trabalho docente ao possibilitar dedicação exclusiva do professor. Com jornada em uma única escola e gratificação financeira, o RDPI contribui para a melhoria do trabalho coletivo, o desenvolvimento das atividades docentes, a formação continuada e a valorização dos profissionais da educação (GRUND, 2019). Para a autora, ainda que sejam ações residuais e não abranjam a totalidade das escolas e professores da rede, o RDPI toca em um dos princípios do Plano Nacional de Educação e do Plano Estadual de Educação de São Paulo que é a valorização dos profissionais da educação.

Se por um lado as condições objetivas de trabalho melhoram significativamente, e aqui não nos referimos apenas ao RDPI, mas também devido a nova estrutura da equipe gestora, que conta com coordenadores de área, coordenação geral e mais tempo de planejamento coletivo; por outro, o modelo de gestão baseados nos resultados das avaliações institucionais intensifica o controle do trabalho docente com a consequente limitação da autonomia pedagógica.

Este modelo de gestão reorganiza a escola de modo que suas ações pedagógicas sejam estruturadas a partir de programas de ação e guias de aprendizagem concebidos pela Seduc. Como um manual de instruções, regula de forma pormenorizada o cotidiano da escola instalando uma “pedagogia do passo-a-passo” altamente verticalizada e burocratizada.

Se o discurso da escola de tempo integral prometeu uma escola mais aberta, comunitária e democrática, a prática tem demonstrado uma educação circunscrita, limitada e que vêm produzindo entre os docentes um clima de medo, instabilidade e insegurança. Além disso, a adesão de escolas ao programa tem produzido o fechamento de classes e turnos, a diminuição do tamanho da unidade, a seleção velada de estudantes, aspectos que contribuem para a ampliação das desigualdades escolares intra rede.


1 http://www.casacivil.sp.gov.br/governo-anuncia-mais-400-escolas-de-ensino-integral-e-triplica-unidadesnoestado/#:~:text=Mais%20400%20escolas%20da%20rede,um%20crescimento%20de%20quase%20300%25.
2 https://www.educacao.sp.gov.br/compromisso-sp
3 São eles: 1) a valorização do capital humano; 2) a gestão pedagógica; 3) a educação integral; 4) a gestão organizacional e financeira e 5) a mobilização da sociedade que estruturam as ações do programa, bem como o foco de atuação e a criação de novos projetos e as demais ações da Seduc.
4 O Programa Ensino Integral tem como objetivo principal “[...] desenvolver jovens autônomos, solidários e competentes, com oferta de espaços de vivência para que eles próprios possam empreender a realização das suas potencialidades pessoais e sociais” (SÃO PAULO, 2014b, p. 14). Para isso, propõe um ensino diferenciado das outras escolas, ocorrido mediante a aplicabilidade de “[...] conteúdo pedagógico, método didático, gestão curricular e administrativa próprios, conforme regulamentação, observada a Base Nacional Comum [...]” (SÃO PAULO, 2012b).
5 O Programa de Ensino Integral foi instituído pela Lei Complementar nº 1.164, de 4 de janeiro de 2012, alterada pela Lei Complementar nº 1.191, de 28 de dezembro de 2012.
6 https://www.educacao.sp.gov.br/a2sitebox/arquivos/documentos/342.pdf
7 O foco da Nova Gestão Pública (NGP) combina mecanismos de flexibilização da gestão com estratégias de accountability, produção de dados por meio de recursos da tecnologia da informação e avaliações.
sistemáticas, com estabelecimento de regime de metas e responsabilização de gestores da administração pública (DASSO JUNIOR, 2014).
8 Mais uma das práticas oriundas do meio corporativo, o benchmarking, também conhecido como a imitação de práticas de sucesso da indústria, passa a ser estratégico para a Seduc.

Referências

DASSO JUNIOR, A. E. Nova gestão pública: a teoria da administração pública do estado ultraliberal. 2014. Disponível em: htpp://www.publicadireito.com.br/artigos/? cod=d05c25e6e6c5d489. Acesso em: 12 dez. 2020.
      GIROTTO, E. ;JACOMINI, MARCIA APARECIDA. Entre o discurso da excelência e a lógica do controle: os riscos do Programa Ensino Integral na rede estadual de São Paulo. REVISTA DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO, v. XXI, p. 87-113, 2020.
      GRUND, Zelina Cardoso. Jornada de trabalho docente: Regime de Dedicação Plena e Integral (RDPI) na rede estadual de ensino de São Paulo. Dissertação de mestrado, UNESP, Presidente Prudente, 2019.