O ensino não presencial e o aumento das desigualdades educacionais: ninguém pode ser excluído!


#SemAulaSemNota


Rede Escola Pública e Universidade (REPU)
Grupo Escola Pública e Democrática (GEPUD)


As aulas presenciais foram suspensas nas escolas brasileiras devido à pandemia da Covid-19 e, desde então, os sistemas educacionais federal, estaduais e municipais têm agido de maneira diversa. As enormes desigualdades que afetam os sistemas de ensino estão agora mais evidentes, e já não podem ser meramente justificadas pelo desempenho de estudantes ou de profissionais da educação nas unidades escolares. Os efeitos das condições socioeconômicas nas desigualdades educacionais não podem mais ser negados

No estado de São Paulo, após o recesso escolar e a antecipação das férias, o ano letivo foi oficialmente retomado em 27 de abril. A Secretaria da Educação do Estado de São Paulo (Seduc-SP) construiu uma proposta de atividades não presenciais para orientar as unidades escolares: um conjunto de ações que buscam reproduzir em casa, de forma pouco articulada, as condições de ensino e aprendizagem das escolas.

Com essa medida, o foco da Seduc-SP em um individual “direito à aprendizagem”, em substituição a um coletivo direito à educação, fica ainda mais evidente. No entanto, o processo educativo pressupõe uma relação entre sujeitos mediada por conhecimentos, e que é claramente comprometida por um ensino remoto individualizado e realizado de forma precária.

Por meio do Centro de Mídias de SP (CMSP), a Seduc-SP visa recompor a “sala de aula” de maneira remota. Uma das iniciativas relacionadas é a gravação de aulas em estúdio para transmissão em plataformas digitais (Facebook, YouTube e o aplicativo do CMSP) e TV pública (TV Vunesp e TV Educação). Também são veiculadas palestras voltadas à formação docente, que substituem parte do horário de trabalho coletivo dos docentes nas unidades escolares1. Como temos visto, as aulas são direcionadas a grupos que podem chegar a centenas de milhares de estudantes, e não garantem aspectos essenciais do processo educativo, como a adequação dos conteúdos às características, especificidades e necessidades do grupo-classe.

Materiais impressos para acompanhamento curricular também foram retirados pelas famílias nas escolas. Os docentes estão sendo orientados a enviar atividades semanais aos estudantes, de forma a cumprir a carga horária semanal de cada disciplina. A entrega das atividades pelos estudantes será utilizada para a validação da presença dos estudantes e para o controle de pagamento dos docentes.2

A Seduc-SP, portanto, ao considerar que as atividades não presenciais realizadas serão validadas como atividades letivas oficiais, está mantendo o calendário de sua Avaliação de Aprendizagem em Processo (AAP), teste padronizado bimestral que avalia habilidades de Língua Portuguesa e Matemática e baseia políticas de gestão por resultados como o Método de Melhoria de Resultados (MMR). Mesmo diante das precárias condições dos estudantes em realizar as atividades não presenciais e do risco de aprofundamento das desigualdades educacionais na rede estadual, as AAPs foram enviadas aos estudantes.

Medidas como essas, que estão sendo adotadas por secretarias estaduais e municipais de educação de todo o país, esbarram nas dificuldades de acesso dos estudantes e familiares à internet, na ausência de equipamentos adequados para os estudos, na dificuldade das famílias em orientar os estudos de crianças e adolescentes e nas limitações socioeconômicas dos estudantes, com especial atenção às meninas e jovens mulheres encarregadas do cuidado com as crianças pequenas e idosos em casa e sujeitas ao aumento da violência doméstica.

Os estudantes com deficiência, que demandam formas e recursos diferenciados para a organização dos estudos, não têm recebido atendimento adequado para tal. Os discentes da Educação de Jovens e Adultos também enfrentam dificuldades para o acompanhamento do ensino remoto, pois precisam muitas vezes combinar o trabalho – tanto no espaço doméstico, quanto fora dele – com a rotina das atividades não presenciais.

Um levantamento realizado por diretores e professores de escolas que participam do Grupo Escola Pública e Democracia (GEPUD), que reúne profissionais de diferentes regiões da cidade de São Paulo, da cidade de Guarulhos, de Taboão da Serra e Embu das Artes, indicou que nas duas primeiras semanas de atividades remotas, a despeito dos esforços das escolas de irem além do que está sendo oferecido pelo CMSP, menos de 50% dos estudantes conseguiram acessar as atividades enviadas e deram retorno a seus professores, o que foi confirmado em diversas reportagens de imprensa veiculadas na semana do dia 11 de maio.

Em que pese a abrangência local desse levantamento, ele salienta um problema fundamental já apresentado por muitos: o ensino remoto amplia as desigualdades educacionais, e muitos estudantes estão sendo excluídos do processo educativo.3 Nesse sentido, é fundamental que os governos produzam levantamentos detalhados que permitam identificar os estudantes que, por motivos diversos, não estão conseguindo participar das atividades não presenciais. Essa é uma informação fundamental para a tomada de decisões sobre as atividades durante a quarentena e, especialmente, para os encaminhamentos que serão adotados depois, quando do retorno às aulas presenciais.

As situações de exclusão observadas até aqui nos levam a questionar a insistência de diversas secretarias da educação, dentre elas a Seduc-SP, em cumprir o calendário letivo de 2020, ou seja, que o ensino não presencial, independentemente de atingir todos os estudantes, seja tomado como carga horária para validar as 800 horas anuais previstas na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.

Além da exclusão pela falta de acesso, esse formato de ensino restringe a educação escolar à mera transmissão de conteúdos e à avaliação padronizada de habilidades. A manutenção das atividades pedagógicas no período de isolamento é importante para o acompanhamento dos estudantes e para propiciar reflexão individual e coletiva, mas questionamos a viabilidade das medidas de mensuração de aprendizagem, sejam elas internas ou externas às escolas. Elas não têm qualquer papel formativo, e são especialmente inadequadas em um momento de intensificação da precariedade do ensino público.

A necessidade de produção de atividades para validar as decisões dos gestores pela manutenção de calendários letivos é um erro pedagógico e um disparate educacional. Deslocar a relação professor-estudante para uma tutoria de atividades remotas elaboradas a partir de fora tem consequências muito sérias, dentre elas a de despedagogizar e precarizar o trabalho docente.

É de se notar, apesar disso, que o número de horas trabalhadas pelos professores para a produção de conteúdos, para o acompanhamento de estudantes nas atividades, bem como para as reuniões de planejamento junto às escolas aumentou consideravelmente. Na transição emergencial e improvisada para o sistema de trabalho domiciliar, são inúmeros os relatos de jornadas de trabalho alargadas e abusivas, considerando que, nesta condição, os limites entre vida privada e trabalho frequentemente desaparecem.

Em estruturas de trabalho precarizado, como já era o caso de muitas redes públicas e privadas de ensino antes da pandemia, não há dúvida que os problemas já existentes tendem a se agravar. Muitos professores já vêm se responsabilizando pelos recursos materiais necessários à execução das atividades remotas: fornecem seu próprio espaço físico, internet, equipamentos eletrônicos e energia elétrica, por exemplo. A despeito das soluções digitais adotadas pelas redes de ensino, são os professores que estão na linha de frente das dificuldades, lidando ao mesmo tempo com as exigências das escolas, as demandas dos estudantes e a necessidade de orientação das famílias.

No que se refere à rede estadual paulista, é urgente reverter a suspensão dos contratos com as empresas prestadoras de serviços terceirizados nas escolas estaduais. São milhares de pessoas – mulheres, principalmente – que tiveram encerrados os seus já precarizados contratos de trabalho. São trabalhadores e trabalhadoras da merenda, da limpeza, cuidadores e cuidadoras que acompanham estudantes com deficiência.

Sobre a merenda escolar, é fundamental que os governos estaduais e municipais garantam que os recursos da merenda sejam destinados às famílias como forma de minimizar o agravamento das precárias condições econômicas por conta do isolamento, que ameaçam as condições de segurança alimentar de crianças e adolescentes. No estado de São Paulo, que possui a maior de ensino do país, é urgente que a “Merenda em Casa” seja garantida para todo estudante matriculado.

Não há argumento que sustente a realização de programas de acompanhamento de metas de gestão e resultados, bem como qualquer outra avaliação em larga escala ou exame nacional, estadual ou municipal. A impossibilidade de realizar um processo educacional minimamente adequado no período de quarentena também exige o adiamento do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), para que as desigualdades já existentes entre os milhões de estudantes que realizam o exame anualmente não sejam ainda mais acentuadas.


Diante do exposto, defendemos:
Que a decisão sobre o retorno às aulas presenciais respeite as orientações sanitárias.
Que as decisões sobre a organização das escolas para o retorno às aulas presenciais sejam debatidas com a comunidade escolar. As secretarias de educação precisam dialogar com professores, diretores, estudantes e famílias sobre os melhores encaminhamentos.
A implementação de políticas de democratização que garantam amplo acesso à internet e equipamentos a todos os estudantes, durante e após a pandemia.
Que as decisões sobre o calendário letivo de 2020 sejam tomadas de forma democrática, com ampla participação das comunidades escolares. A garantia do direito à educação deve orientar a reorganização dos conteúdos escolares, de forma a evitar exclusões.
A suspensão de todas as avaliações, incluindo os testes em larga escala, até que a situação seja debatida, em cada escola, por todos os atores envolvidos no processo educativo.
O adiamento do Enem.


APOIAM ESTA NOTA
Ação Educativa
Associação Brasileira de Ensino de Biologia (SBEnBio)
Associação Brasileira de Ensino de Ciências Sociais (ABECS) – UR-São Paulo
Associação Nacional de História – Seção São Paulo (Anpuh-SP)
Associação Nacional de Pesquisadores em Financiamento da Educação (Fineduca)
Associação Nacional de Política e Administração da Educação (Anpae)
Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd)
Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (Anpof)
Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação (Anfope)
Centro de Estudos Educação e Sociedade (Cedes)
Coletivo Proposta pela Educação – Santo André
Comitê SP da Campanha Nacional pelo Direito à Educação
Conselho Regional de Psicologia de São Paulo
Escola Dieese de Ciências do Trabalho
Federação dos Professores do Estado de São Paulo (Fepesp)
Fórum Municipal de Educação de São Bernardo do Campo
Fórum Nacional de Coordenadores Institucionais do Parfor (Forparfor)
Fórum Nacional de Diretores de Faculdades/Centros/Departamentos de Educação ou Equivalentes das Universidades Públicas Brasileiras (Forumdir)
Fórum Nacional dos Coordenadores Institucionais do PIBID e Residência Pedagógica (ForpibidRP)
Grupo Interinstitucional de Queixa Escolar Juventude do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST)
Movimento de Ativistas Sociais de Santo André (Massa)
Movimento Independente Mães de Maio
Movimento Nacional em Defesa do Ensino Médio
Rede Ubuntu de Educação Popular
Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp)
Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes-SN)
Sindicato Nacional dos Servidores Federais da Educação Básica, Profissional e Tecnológica (Sinasefe)
Sindicato Nacional dos Servidores Federais da Educação Básica, Profissional e Tecnológica, Seção São Paulo (Sinasefe-SP)


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