Vivemos uma situação de atenção e apreensão diante da pandemia do Covid-19. O enfrentamento desse grave problema, tendo em vista a necessidade de preservar a vida das pessoas, vem exigindo medidas governamentais que incluem a suspensão dos serviços não essenciais, maciços investimentos para o fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS), uma política robusta para a preservação de empregos e salários e um vigoroso programa de renda básica que assegure a sobrevivência da população mais vulnerável. Os recursos financeiros para garantir a efetivação dessas medidas emergenciais devem vir de uma profunda revisão da estrutura tributária brasileira – principalmente via taxação das grandes fortunas –, da revogação da Emenda Constitucional n. 95/2016 e da suspensão das despesas financeiras que só favorecem bancos e grandes empresas.
Devido ao isolamento forçado da população para conter a velocidade de propagação do vírus, diversas propostas de prosseguimento das aulas utilizando ferramentas de “ensino a distância” estão em curso nas redes públicas e privadas do país. A potencial adoção sistemática de uma forma improvisada de ensino a distância em uma rede pública enorme (e já tão precarizada) como a do estado de São Paulo, levanta uma série de preocupações a respeito dos papéis que escolas, educadores e a própria rede de ensino devem desempenhar em um momento de tamanha calamidade.
A sociedade elegeu a escola como guardiã e disseminadora dos conhecimentos que produzimos sobre o mundo. Um mundo onde convivemos com pessoas diferentes e que nos abre a possibilidade diária – especialmente nos momentos trágicos – de entendermos que somos todos humanos. Na escola se aprende com o diálogo e com as ideias, mas também com os cinco sentidos. Também é lá onde se descobre que projetar um mundo diferente para viver não é obra do desejo individual, mas de um lento processo de construção coletiva.
Para orientar o trabalho dos estudantes nas escolas, a sociedade escolheu os professores, pessoas por quem nos apaixonamos, mas que também detestamos, muitas vezes confundindo-os com os conteúdos que ensinam, e que também amamos e odiamos. Ao mesmo tempo em que os educadores demonstram paciência, disposição para o diálogo e extrema dedicação ao trabalho, eles também exibem todas as cicatrizes de uma sociedade que assedia e não valoriza seus profissionais da educação, submetendo-os a condições de trabalho extenuantes.
Frente a uma crise humanitária que desnuda as nossas brutais desigualdades sociais e fragilidades biopsicossociais e ambientais, o maior desafio dos educadores neste momento é manter vivos os sentidos de humanização da escola pública. Para tanto, o que as redes de ensino devem demandar dos educadores? Que eles se restrinjam a executar rotinas de conteúdos – “sequências didáticas” – para ocupar a mente, o corpo e o tempo dos estudantes?
Afirmamos desde já que, ante uma tragédia dessas proporções, nenhuma proposta de “ensino a distância” pode se dar em nome da mera necessidade de repassar conteúdos aos estudantes, nem de uma necessidade burocrática de concluir o ano letivo para diminuir as perdas financeiras das redes de ensino com reposições de aulas. Isso não quer dizer que atividades a distância não possam acontecer, mas que os “conteúdos” a serem preservados precisam ser outros.
Os eventuais encontros virtuais entre estudantes e professores não devem ser espaços de transmissão de conteúdos pura e simples, mas de promoção de diálogos e de fortalecimento de laços de solidariedade, sendo este o melhor apoio que se pode dar à formação e ao desenvolvimento das crianças e adolescentes em um momento tão difícil. Tais encontros, além disso, devem reforçar a dimensão pública da escola e o seu papel de formação para a cidadania, valorizando todos os profissionais da educação e estimulando-os a atuarem, junto às suas escolas e redes de ensino, na defesa dos direitos de crianças e adolescentes e do direito à educação.1
Se há uma coisa que esse isolamento forçado vem mostrando, é a importância da escola pública e dos educadores na vida de crianças, adolescentes e jovens: o papel socializador e formador de subjetividades que é específico da escola e que é mediado por educadores. No momento atual, valorizar esse papel é muito mais importante do que cumprir calendários escolares e de avaliação ou do que qualquer entrega de “aprendizagens” padronizadas.
No estado de São Paulo, a Secretaria da Educação (SEDUC-SP) decidiu pela suspensão das aulas e pelo fechamento das escolas estaduais, orientando que os serviços essenciais seriam realizados de forma remota. Desde o início, em várias escolas da rede, diretores e coordenadores foram pressionados pela SEDUC-SP para o envio de atividades aos estudantes, tendo sido cobrados para que tudo fosse minuciosamente registrado. Tal incentivo à “produtividade”, por meio de um teletrabalho sem qualquer regulamentação, estabeleceu um ambiente de trabalho ainda mais hostil aos professores da rede.
No dia 03 de abril de 2020, os profissionais da educação e os estudantes da rede estadual paulista foram oficialmente informados pela SEDUC-SP que o processo educativo será realizado a distância a partir do dia 22 de abril de 20202, quando termina o período de recesso escolar e de férias dos professores, que haviam sido antecipados em função da pandemia. Assim, sem nenhuma consulta às comunidades escolares, o governador João Doria e seu secretário da educação, Rossieli Soares da Silva, informaram que as atividades a distância passarão a ser contadas como dias letivos, modificando toda a organização do trabalho pedagógico nas escolas estaduais.
No mesmo dia, a Resolução SEDUC n. 38 instituiu o Programa “Aprender em Casa”, que prevê a distribuição de materiais de apoio aos estudantes das redes estadual e municipais de São Paulo, e que tem como objetivos: “I – promover a aprendizagem dos estudantes; II – manter e reforçar o vínculo com a escola; III – reduzir o abandono escolar; IV – promover a equidade, oferecendo oportunidades educacionais a todos os estudantes”. Trata-se de uma regulamentação inespecífica, que abre possibilidades tão diferentes quanto incertas para a continuidade do trabalho pedagógico nas escolas da rede estadual, pois se atividades a distância serão efetivamente consideradas para a contabilização dos dias letivos na rede estadual, é preciso saber que atividades serão essas.
O governador e o secretário também anunciaram, em entrevista coletiva (03 abr. 2020), o lançamento do aplicativo “Centro de Mídias SP”, plataforma acessível via smartphone por meio da qual serão disponibilizadas aulas na forma de vídeos e outros conteúdos. O acesso ao aplicativo se dará por meio de internet gratuita, viabilizada por contrato do governo paulista com operadoras de telefonia celular e restrita ao uso do “Centro de Mídias de SP”.
Em primeiro lugar, a tarefa de reorganizar as atividades didáticas das escolas por meio desta ferramenta não é simples. Diversas questões práticas, organizacionais e de isonomia entre os profissionais de educação permanecem em aberto.
Quais são os critérios para a seleção dos professores que gravarão as aulas? Quando e como serão feitas as gravações? O que farão os demais educadores? Isso não fere os princípios da docência como serviço público? E quanto às aulas? Seguirão a lógica da “entrega” de conteúdos, já amplamente disseminada em diversos programas da SEDUC-SP e que ameaça a realização de alguns dos papéis sociais mais importantes da escola pública? E o que farão as escolas, que haviam planejado as suas atividades letivas e que agora se veem diante de um “planejamento” centralizado para toda a rede e decidido pela SEDUC-SP?
Além disso, o governo de São Paulo parece pressupor que todos os estudantes das escolas estaduais dispõem do suporte necessário para acessar as atividades e para interagir com os professores por meio do novo aplicativo.
Como bem público, o acesso à internet é recurso essencial à formação dos estudantes e às suas práticas regulares de estudo e pesquisa. Enquanto a gratuidade do “pacote” de dados oferecido pelo programa de inclusão digital do governo de São Paulo limita-se ao acesso ao “Centro de Mídias SP”, os estudantes das classes média e alta têm menos dificuldades para prosseguir com seus estudos nas escolas privadas por possuírem computadores, smartphones e conexão à internet com certas características, bem como condições ambientais propícias ao estudo em casa. Logo, o governo de São Paulo deveria prover acesso amplo à internet como forma de inclusão social e cidadã dos estudantes da rede estadual.
Isso também facultaria às famílias mais pobres do estado de São Paulo o acesso a informações mais qualificadas sobre a pandemia e os protocolos de saúde pública para a sua contenção, afastando a enxurrada de desinformação e de notícias falsas que chegam, sobretudo, por meio de aplicativos de comunicação de uso coberto pelos pacotes de dados mais baratos do mercado. A política educacional emergencial do governo de São Paulo, portanto, deveria abarcar também as famílias dos estudantes.
Segundo o que divulgou até agora, a SEDUC-SP pretende utilizar o novo aplicativo para “resolver” o cumprimento dos dias letivos dos estudantes do Ensino Médio e dos Anos Finais do Ensino Fundamental, enquanto os estudantes dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental “contarão com uma programação específica pelo canal de TV Cultura Educação e receberão material impresso”. Mas quem vai preparar esses materiais? E como continuarão os estudos milhares de crianças de seis anos de idade que acabaram de ingressar no primeiro ano do Ensino Fundamental e mal iniciaram o processo de alfabetização? E os estudantes com algum tipo de deficiência, que carecem de recursos e orientações específicas para essa continuidade? E como ficam as condições de acesso dos estudantes adultos e idosos da Educação de Jovens e Adultos? Como se vê, são muitas as questões em aberto.
Ainda que os estudantes tenham todas as condições de acessar recursos digitais, seu aproveitamento também dependerá das diversas contingências que o isolamento e a pandemia imporão às suas famílias ao longo do tempo, inclusive de adoecimentos, falecimentos e outras privações. Nesse sentido, é importante que a SEDUC-SP providencie algum tipo de apoio psicológico a estudantes, familiares e professores durante o período de isolamento.
Embora disponibilizar conteúdos escolares para que os estudantes acessem, realizem atividades e tirem dúvidas pareça uma medida sensata para o momento, isso não pode substituir de forma improvisada e pouco planejada as aulas presenciais regulares. Somos contrários à continuidade do calendário escolar oficial nessas condições adversas, inseguras e precárias. A nova “oferta” educacional a distância, que se dá em caráter estritamente emergencial, não tem equivalência com os processos educativos presenciais regulares que deveriam ocorrer no primeiro semestre de 2020 nas escolas estaduais de São Paulo, inclusive para efeitos de avaliação, promoção e reprovação dos estudantes.
É temerário que, diante das condições em que vive parte da população do estado – especialmente nas periferias das grandes cidades, onde as prioridades atuais são com alimentação e condições mínimas de higiene e de habitação –, o governo de São Paulo opte por tomar iniciativas que reforçam desigualdades educacionais na rede de ensino. No momento em que é mais necessário valorizar o trabalho coletivo, a SEDUC-SP toma decisões centralizadas e sem a participação das escolas e dos profissionais da educação. O resultado, até aqui, é a adoção de medidas inseguras, insuficientes e que agravam a precariedade do ensino público do estado de São Paulo.
É preciso acompanhar atentamente a abrangência e os efeitos das ações da SEDUC-SP durante esse período, para que, tão logo seja possível restabelecer o funcionamento das escolas, as comunidades possam discutir a melhor forma de reorganizar o trabalho pedagógico tendo em vista as suas realidades locais e a garantia do direito à educação a todos os estudantes da rede.
O GEPUD reúne profissionais da educação básica e superior pública do estado de São Paulo para discutir políticas que garantam o direito à educação e a gestão democrática da escola.
A REPU é formada por professores e pesquisadores de instituições públicas de Ensino Superior do estado de São Paulo (Unicamp, UFSCar, UFABC, USP, Unifesp e IFSP) e por professores da educação básica, e tem como objetivo realizar estudos, pesquisas e intervenções para colaborar com o direito à educação de qualidade e socialmente referenciada na rede estadual paulista.