Estamos há 15 meses com as atividades presenciais nas escolas da rede estadual paulista suspensas, e ainda não é possível voltar à “normalidade”, devido aos limites da política de imunização do conjunto da comunidade escolar e das condições sanitárias das escolas, principalmente pela falta de insumos e funcionários para a manutenção dos prédios em condições adequadas de biossegurança. Mas é importante reforçar que o fechamento das escolas foi uma medida correta e necessária ao enfrentamento da pandemia, que certamente contribuiu para evitar inúmeros contágios e salvou a vida de muitos estudantes, familiares e profissionais da educação.
A crise sanitária aprofundou a crise econômica, gerando milhares de desempregados, retirando-lhes as condições básicas de sobrevivência. Essa situação também contribuiu para o agravamento da saúde mental das famílias, já bastante abalada pela condição pandêmica em que vive o país e o mundo.
Mesmo diante dessa difícil realidade, na Secretaria de Educação do Estado de São Paulo (Seduc) a vida parece transcorrer normalmente, numa espécie de mundo “virtual” da eficiência e da urgência. Os rumos das escolas são determinados diariamente por decretos, resoluções e orien-tações a fim de que a política educacional da Seduc seja implementada. Nesse intencional ritmo da urgência, as comunidades escolares, sobretudo, os profissionais da educação e os estudantes, não são consultadas adequadamente acerca do conteúdo das propostas, tampouco conseguem dis-cutir democraticamente os efeitos das mudanças.
Neste mundo virtual em que tudo parece funcionar bem, não há espaço para a Seduc olhar atentamente para o fato de que “Metade dos alunos cadastrados nas escolas da rede pública de Ensino – mais de 1,67 milhão de estudantes – não acessou a plataforma para acompanhar os con-teúdos de aulas à distância implantados pela Pasta da Educação do Estado de São Paulo ao longo de 10 meses da pandemia” [Disponível em: https://www.tce.sp.gov.br/6524-metade-alunos-rede-publica-estado-nao-acessou-videoaulas], ou que “Oito em cada dez alunos das escolas estaduais de São Paulo não ficaram mais que duas horas online no aplicativo de ensino remoto do governo paulista ao longo de quase todo o ano de 2020” [Reportagem de JOSÉ MARQUES/ANGELA PINHO- FOLHA DE SÃO PAULO – 01/07/2021 – SÃO PAULO, SP].
Desconsidera, portanto, a exclusão digital de parcela significativa da comunidade escolar, na medida em que institui como instrumento de consulta plataformas digitais centralizadas exclu-sivamente sob o poder das gestões escolares ou das instâncias intermediárias da Secretaria. Ou seja, exclusão e autoritarismo com roupagem participacionista.
Esta tem sido a estratégia do secretário Rossieli Soares para implantar um conjunto de po-líticas que, em tempos “normais”, poderiam sofrer forte resistência, a exemplo da luta dos estu-dantes que barrou a reorganização das escolas em 2015. Foi assim com o ensino remoto e o Centro de Mídias de São Paulo, o Programa Inova Educação, as novas adesões de escolas ao Programa Ensino Integral e agora com o Novo Ensino Médio. Contraditoriamente, frente ao discurso oficial nas mídias sobre “a necessidade de retorno das aulas presenciais”, o governo, na prática, se bene-ficia dessa situação para “para passar a boiada”, numa corrida pelo pioneirismo do estado na im-plantação do Novo Ensino Médio e da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), apoiado nas parcerias com o setor privado.
A Reforma do Ensino Médio modificou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB/96), nº 9.394/1996, prevendo para esta etapa da educação básica uma ampliação da carga horária de 800 para 1.000 horas anuais destinadas às disciplinas da BNCC, ou núcleo comum, e as novas áreas curriculares, os Itinerários Formativos, que incluirá a formação técnica profissional, a serem ofertados conforme a relevância e a possibilidade das redes de ensino.
O resultado é uma reforma que, além de romper com a ideia de uma educação básica voltada à formação geral dos estudantes que, em certa medida, estava contemplada na LDB/96, produzirá uma formação precarizada para os alunos das escolas públicas via certificação intermediária de qualificação profissional. Ou seja, ao cumprir um módulo de qualificação, o estudante receberá um certificado para trabalhar em determinada função, geralmente vinculada a profissões de baixa remuneração.
Seguindo o movimento nacional, - em que tais mudanças ocorreram em velocidade surpreendente, ignorando os movimentos de educadores e privilegiando o diálogo com setores empresariais que têm disputado as pautas educacionais - em São Paulo a implantação começou já em 2019.
Naquele ano, a gestão Dória e a equipe de Rossieli Soares na Seduc deu início à reforma por meio da implantação dos programas Inova Educação e Novotec, com importante participação de agentes privados vinculados ao capital, com destaque para o Instituto Ayrton Senna e grupos patrocinados pela Fundação Lemann, que aprofundaram um processo de privatização por dentro da escola, por meio dos conteúdos, com a introdução de noções do empreendedorismo, liderança, protagonismo, competências socioemocionais, cuja finalidade é “ensinar o espírito da empresa na escola”.
O Novo Ensino Médio mudará substancialmente a formação das novas gerações e afetará a organização e o funcionamento das escolas e as condições de trabalho dos professores sem o necessário debate com as comunidades escolares que uma reforma com essa complexidade e implicações nas vidas de estudantes e profissionais da educação requer. Em um contexto de fragilização da vida, devido ao isolamento, mortes e empobrecimento, as preocupações das famílias estão voltadas à administração dessas dificuldades urgentes, não restando energia e atenção às mudanças que estão sendo realizadas na educação escolar de seus filhos.
Ou seja, o governo não tem dado a devida atenção às dificuldades que o atual contexto impõe à participação dos estudantes em decisões que influenciarão suas vidas, o que nos leva a questionar:
O fato é que diante de um futuro enevoado, incerto e precário, promover grandes mudanças sob o pretexto de que oferecerão “a solução” para os problemas do presente sem antes promover uma profunda e ampla discussão com todos os sujeitos escolares que serão impactados por essas mudanças, em especial com os alunos e suas famílias, é, para dizer no mínimo, antidemocrático, além de ilusório e falacioso.
Todas as vezes que fazemos uma pausa, que colocamos em suspenso o turbilhão de (des)informação que recebemos diariamente nas escolas, e nos debruçamos numa análise que vai além das aparências para compreendermos a essência, vemos na Reforma do Ensino Médio, consubstanciada no Novo Ensino Médio da Seduc, uma proposta de formação aligeirada que sob o discurso do novo, da escolha e de formação adequada às aspirações dos jovens, privará as novas gerações de acessarem na educação básica — que compreende a educação infantil, o ensino fundamental e o ensino médio e que é obrigatória dos quatro aos 17 anos - o conhecimento científico, histórico, literário, filosófico, tecnológico etc., ou seja, aquele conhecimento que possibilita às novas gerações serem introduzidas em um mundo que, apesar de velho, é novo para elas.
O Novo Ensino Médio tende a naturalizar para jovens e adolescentes da escola pública a terminalidade de seus estudos nesta etapa da educação básica, de maneira a aprofundar ainda mais a desigualdade educacional, sobretudo, no que tange ao acesso à educação superior.
Por isso, diante desse cenário em que a Seduc impõe aos estudantes a escolha de Itinerários Formativos, é fundamental que os profissionais da educação problematizem os limites desse “novo” ensino médio, o futuro da escola e da formação da juventude, em um contexto de elevação das taxas de informalidade no mercado de trabalho, de desregulamentação das leis trabalhistas e da consequente precarização das condições de trabalho.